Como todos os bairros de São Paulo, o Capão possui um
centro comercial. Hoje (2012) ele é um importante polo para os bairros
adjacentes, porém na minha infância, o movimento era menor, não havia lojas de
departamentos ou grandes lojas de calçados, o que existia era um modesto comércio
local dominado por imigrantes.
As
lojas de móveis eram dos libaneses, mas nossos pais os chamavam de “turcos”,
não sei o porquê da confusão, creio que o motivo era religioso, como eram
mulçumanos, por dedução eram turcos. Havia também as lojas de roupas, miudezas
e quitandas que eram de predominância japonesa, enquanto as padarias eram de
portugueses (mesmo se o dono da padaria não tivesse ligação nenhuma com as
terras lusitanas).
Os
demais moradores, como eu, eram das “Terras do Norte” (nordestinos). A colônia
nordestina era e, ainda é, a grande força produtiva de nosso bairro. Os
sotaques eram inconfundíveis, meus pais, alagoanos, conseguiam precisar o
estado de origem de um nordestino pela entonação de voz. Havia varias formas de
excluir um indivíduo de acordo com sua origem: os baianos eram tidos por
trabalhadores, os cearenses eram os mais impulsivos, os pernambucanos de
mulheres fortes e homens enrolados, nós, os alagoanos os mais excludentes. Meu
tio Joel, um dos pioneiros do bairro, dizia com certo orgulho, que não havia “vadiagem”
entre os alagoanos.
Além
de pertencer a colônia nordestina, meus familiares e eu, pertencíamos a outra
divisão social em nosso bairro, éramos todos evangélicos pentecostais. Esta
divisão religiosa tem grande importância na dinâmica do bairro, pois somos um
dos bairros com maior concentração de adventista (denominação cristão de origem
americana) em nosso Estado.
Ser
pentecostal nas décadas de 80 e meados de 90 do século XX, nas periferias das
grandes cidades brasileiras, causava um estigma. As comunidades eram
extremamente fechadas, mesmo que dadas aos convencimentos de outros para
aderirem aos seus costumes. Não possuíamos aparelhos televisivos, não praticávamos
esportes e após o batismo (que ocorria para os jovens entre os 12 e 15 anos e
paras os novos convertidos após admissão na comunidade), os homens não podiam usar
roupas esportivas (shorts, camisetas regatas e afins), não podiam discutir
futebol ou ser dado a vícios, por sua vez as mulheres não cortavam os cabelos
nem usavam trajes masculinos (calças) nem nenhum tipo de adorno ou joias. Quase
toda a comunidade era formada por pessoas pobres, de baixa escolaridade. Os de
maiores destaques eram metalúrgicos, que possuíam nível técnico e uma condição
econômica diferenciada.
Era
fácil detectar um “crente” (termo usado pejorativamente para nos designar), nós
possuíamos costumes e hábitos diferentes, nossos assuntos eram diferentes,
nossas roupas eram diferentes e isto, causava um misto de orgulho e raiva: raiva
por não sermos como os outros garotos e orgulho exatamente por isto também.
Nossa
comunidade se reunia na Igreja Assembleia de Deus do Capão Redondo, cada culto
(como é chamado as reuniões nas igrejas) era uma festa, as mulheres bem vestida
com roupas feitas, (especialmente para estas ocasiões) por costureiras da
própria comunidade, usar roupa comprada pronta não era bem visto. Os homens de
paletó e gravata e sapatos bem engraxados. Como muitas ruas do bairro não era
asfaltada havia uma lâmina de ferro, sem corte na porta da igreja, onde
limpávamos os sapatos repletos de barro.
No
centro do bairro, próximo ao supermercado Ki-Preço, havia um endereço especial
para mim e para a comunidade evangélica. Um lugar de debate e discussão, um
salão de cabelereiro, ou melhor, uma barbearia, “Salão Alagoas”. Com uma
decoração sóbria, cadeiras de ferro, revestidas de madeira e estofados marrom,
com grandes espelhos arredondados, toldos de metal, onde se conversava apenas
sobre teologia e política. O barbeiro era conhecido como “Irmão Laerço”, para
mim: era o tio Laerço.
Homem
de personalidade forte e grande conhecimento, divertido e ao mesmo tempo
solene, passava horas a falar sobre bíblia e política. Era ferrenho defensor do
prefeito Jânio Quadros (posição que o levou a grandes contendas), em uma gaveta
abaixo do balcão, onde deixava os materiais de oficio, existia vários botons em
forma de vassoura, símbolo de Jânio.
Durante
os finais de semana passava os dias lá, sábado era o dia de maior movimento no
salão, vários pastores e irmãos de nossa comunidade apareciam, como o trabalho
era muito, meu tio me dava “um dinheiro” todas as vezes que varria o salão, e
assim o dia passava. Tinha duplo beneficio: ganhava um troco, para a bala, (que
era comprada na venda do “irmão” Filadélfio) e ouvia conversa de adulto.
Aos
domingos íamos à igreja duas vezes: para a Escola Dominical, era o melhor
momento da semana para as crianças, podíamos falar e perguntar o que
quiséssemos, eu aproveitava para reproduzir o que havia escutado no dia
anterior no salão, e como brinde ganhava elogios, a noite havia o culto
principal com o coral e a banda, era lindo ouvir e ver os solos, depois tinha o
momento onde o pastor falava e seus erros e vícios de linguagens, típicos
daqueles homens de curta cultura e grande boa vontade, eram o que iria nos
divertir no fim da noite, com imitações fantásticas feitas pelos meus primos
mais velhos.
Tudo
acabava as dez e meia de domingo, com o fim do bolo de farofa feito pela minha
tia Eliane, tio Laerço nos levava até a porta do fusca velho de meu pai, e
dizia a melhor frase da minha infância.
- “Artegézio (meu pai), manda o menino semana
que vem”. Papai dizia que eu iria incomodar, ele respondia: - “Não, ele é um
bom menino.”